A dificuldade em se definir quais partes do DNA têm função e quais não têm mostra que a genômica está longe de ser uma tarefa meramente burocrática, em que os computadores fazem tudo sozinhos. 'O grande problema é que o genoma é uma entidade evolutivamente muito dinâmica', explica o biólogo da USP Sérgio Matioli. 'Há genomas que se expandiram muito, e aí fica difícil saber quais genes tiveram a mesma origem, para depois fazer a comparação entre duas espécies.' Mesmo quando dois genes de espécies diferentes são homólogos, isto é, têm a mesma origem, é possível que não tenham a mesma função. E boa parte das diferenças que podemos enxergar tem origem em mudanças muito sutis no DNA. Até pouco tempo atrás, não se conhecia nenhum gene exclusivo de hominóides, a família de primatas que engloba os humanos. Em fevereiro deste ano, cientistas da Escola Médica de Harvard, em Boston (EUA), descobriram que o Tre2 - um gene ativo nos testículos - só existe nesses animais. Como o Tre2 exerce influência sobre células germinativas, pesquisadores acreditam que seu surgimento pode ter levado a uma separação evolutiva, dividindo uma espécie ancestral em dois grupos incompatíveis para reprodução.
Quase humano
Um genoma cujo seqüenciamento é esperado com grande expectativa é o do chimpanzé, a espécie mais próxima dos humanos na árvore da vida. Os cientistas acreditam que a comparação revele um número muito pequeno de genes exclusivos de humanos. 'Deve haver algumas dúzias', disse a GALILEU Naruya Saitou, do Instituto Nacional de Genética do Japão, um dos líderes do projeto. 'Mas a maioria provavelmente é muito parecida com aqueles que existem no chimpanzé. '
A publicação do primeiro esboço completo do genoma desse macaco e de uma versão aprimorada do genoma humano está previstas para até julho, mas alguns genes isolados já deram boas pistas sobre diferenças genéticas que tornam o Homo sapiens uma espécie tão peculiar.
Um estudo em 2002 revelou um fator importante sobre as diferenças genéticas que criam o intelecto - a qualidade pela qual os humanos acreditam se destacar das outras espécies. Cientistas do Instituto Max Planck para Antropologia Evolutiva, em Leipzig (Alemanha), descobriram que muitas proteínas do cérebro codificadas em genes compartilhados por homens e chimpanzés são produzidas em quantidades diferentes em cada um. 'Nos demos conta de que quase todas as características que separam os humanos dos macacos podem estar por trás de diferenças em grau, mais do que diferenças absolutas', escreve Svante Pääbo, diretor da instituição. Ele se tornou conhecido na comunidade científica internacional em 1997, quando usou o relógio molecular para provar que o homem de Neanderthal não era um ancestral doHomo sapiens. O trabalho de Pääbo com o grupo de Leipzig tem contrariado bastante as teorias com doses exageradas de determinismo genético - a crença de que o DNA seria responsável por todos os aspectos do ser humano, o comportamento inclusive.
Não se trata, porém, de desprezar a importância da genômica, pois muitas habilidades exclusivas do Homo sapiens dependem mesmo de pequenas diferenças entre genes homólogos. No ano passado, Pääbo anunciou ter identificado uma pequena variação entre as versões humana e símia do FOXP2, um gene fundamental para a habilidade da linguagem. Os códigos das duas versões do FOXP2 diferem em apenas dois aminoácidos, os 'tijolos moleculares' que compõem as proteínas. É claro que esse é apenas um entre os muitos genes que devem influenciar a linguagem, mas pessoas com anomalias nesse trecho de DNA têm distúrbios graves de fala.
Acontece que o chimpanzé também é diferente do primata que foi nosso ancestral comum, e por isso nem todas as diferenças genéticas que temos com esse macaco foram 'inovações' humanas.
'Como estamos interessados em procurar características específicas de humanos, será necessário estudar outras espécies de macaco além do chimpanzé', diz Saitou. O genoma do gorila, por exemplo, poderia explicar muitas coisas, pois uma parte pequena do DNA humano é mais parecida com o desse macaco brutamontes do que com o do chimpanzé.
Visão abrangente
Um grupo de pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, na Califórnia (EUA), defende que macacos pouco aparentados com o homem também entrem na lista de prioridades. Eles mostraram
em um estudo preliminar que a inclusão de macacos sul-americanos e outros primatas na comparação com humanos pode render bons frutos.
A genômica pode trazer ainda muitas dicas para ajudar a descobrir 'o que nos torna humanos', mas poucos acreditam que ela substituirá o trabalho da biologia tradicional e da psicologia. É necessário saber quais diferenças os primatas têm entre seus fenótipos - as características manifestadas - para que a comparação do DNA faça algum sentido. Essa é a opinião do cientista Maynard Olson, da Universidade de Washington, um dos mais ativos no Projeto Genoma Humano: 'O aproveitamento total do genoma do chimpanzé vai depender da expansão dos estudos sobre os fenótipos dos macacos hominóides'.
Otávio Dias |
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Humanos |
M. Boyayan |
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Chimpazés - separados evolutivamente do homem 5,4 milhões de anos atrás |
AP |
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Bonobos - separados evolutivamente dos chimpanzés 3 milhões de anos atrás |
Reprodução |
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Gorilas - separados evolutivamente do homem 6,4 milhões de anos atrás |
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