Clonagem, homens em série

Enquanto você lê esta reportagem, há alguém tentando clonar um ser humano em algum lugar do mundo. Na surdina. Provavelmente, o pesquisador responsável pela tarefa acaba de soltar um suspiro inquieto ao constatar que, mais uma vez, a experiência falhou. A técnica usada na tentativa de produzir clones de gente é bem parecida com aquela que trouxe ao mundo a ovelha Dolly, em 1997, e outros tantos mamíferos desde então. São centenas de óvulos para gerar alguns poucos embriões. Em seres humanos, até hoje, nenhum deles vingou, devido a causas ainda desconhecidas. Diante do fracasso, expresso em abortos espontâneos e fetos malformados, restam alguns milhões de dólares investidos e grupos de doadoras de óvulos, de candidatos à clonagem e de mães de aluguel – todos frustrados. A meta é trazer ao mundo um bebê saudável, o que provavelmente daria ao pesquisador o prêmio Nobel pelo nascimento do primeiro clone humano.
A receita para duplicar um indivíduo não é um segredo de Estado: segue, basicamente, os mesmos passos do processo usado para clonar ovelhas, vacas e ratos. Se os resultados da clonagem de mamíferos ainda não são satisfatórios, por que tentar duplicar pessoas? “Ações inescrupulosas em relação à clonagem de gente trarão descrédito para aqueles que fazem pesquisas sérias nos campos do desenvolvimento humano, com grande impacto sobre a medicina”, afirma o geneticista Ian Wilmut, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, “pai” da ovelha Dolly. “Devemos sempre fazer a ciência avançar antes de colocá-la em prática”, diz o veterinário brasileiro Lawrence Smith, professor da Universidade de Montreal, no Canadá. Especialista em clonagem por transferência nuclear, Smith integrou a equipe escocesa que criou Dolly, e agora trabalha com o aperfeiçoamento das técnicas de clonagem em bovinos. Para chegar ao bezerro Starbuck II, duplicata de um touro já morto, foram 68 tentativas. Nem todos os óvulos se tornaram embriões, nem todos os embriões vingaram. Somente quatro deles permaneceram implantados no útero de uma vaca receptora durante pelo menos um mês de gestação e, desses, três foram abortados espontaneamente.
Perto das 277 tentativas para chegar até Dolly, Starbuck II foi um sucesso. “Trata-se de um avanço, sim, mas ainda há falhas enormes”, diz Smith. Até agora foram clonadas em laboratórios do mundo inteiro cinco espécies de mamíferos – ovelhas, ratos, cabras, vacas e porcos. Os próximos na mira dos cientistas são os felinos. A maioria dos clones morreu nos vários estágios do desenvolvimento embrionário, foi abortada naturalmente durante a gestação ou nasceu com deficiências respiratórias, imunológicas e metabólicas, sobrevivendo apenas alguns dias ou semanas. Mas os animais que vingam são tão saudáveis quanto aqueles que nascem por métodos naturais – pelo menos na aparência. Só que não existe comprovação científica de que a clonagem não traga problemas futuros.
Sem haver consenso nem mesmo entre os próprios cientistas, a clonagem humana para fins reprodutivos encontra restrições em diversos países. Muitos, como a Austrália e o Canadá, ratificaram a proibição da prática. Nos Estados Unidos, no dia 26 de abril último, um senador e um deputado republicanos apresentaram projetos de lei que tornam ilegal a clonagem de células humanas, não importa se usadas em pesquisas ou para reprodução. No momento, a Inglaterra é o único país do mundo que abriu uma brecha para a clonagem: permite experiências com embriões clonados para fins terapêuticos, com o objetivo de pesquisar a cura de doenças como o mal de Parkinson e produzir tecidos de órgãos vitais em laboratório para facilitar transplantes.
A chamada clonagem terapêutica parte do estudo das células-tronco, que são células não-diferenciadas com potencial para se transformar em qualquer tipo de célula ou tecido do organismo – desde neurônios até células epidérmicas, sangüíneas ou musculares. Elas existem em pequena quantidade no indivíduo adulto, espalhadas por todo o corpo, mas constituem o embrião com poucos dias de idade, quando ele ainda é um conjunto de células totalmente iguais, sem nenhuma especialização.
A idéia é usar a técnica de transferência de núcleo (a mesma que originou Dolly) para criar um embrião clonado e extrair dele as células-tronco, descartando o que não for aproveitado. Imagine um indivíduo com o fígado parcialmente comprometido. O núcleo de uma célula saudável desse paciente seria colocado no óvulo anucleado de uma doadora. A partir daí, haveria um embrião, geneticamente idêntico ao paciente, cujas células-tronco seriam colhidas. Essas células evoluiriam para um tecido
saudável de fígado, posteriormente transplantado para o paciente (em substituição ao tecido doente). O restante daquele clone seria descartado.
Se a sabedoria popular já recomendava ir com calma na hora de discutir assuntos como religião, política e futebol, use essa mesma prudência quando entrar num debate sobre clonagem humana. Argumentos a favor ou contra não faltam; mas ainda não existem respostas definitivas para muitos dos resultados positivos ou negativos obtidos nas experiências com clonagem reprodutiva ou terapêutica. “O limite está na prudência, na avaliação dos riscos e dos benefícios”, diz o médico Marco Segre, especialista em bioética da USP.


Fonte: REVISTA SUPERINTERESSANTE, JULHO DE 2001. Por Maria Fernanda Vomero. 

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